“Você não sabe de nada, Jon Snow!”
Imagem gerada pela inteligência artificial da Microsoft Bing. Ela representa o personagem Jon Snow de Game of Thrones coletando água com as mãos em um poço antigo. Ele olha para a água em suas mãos com um semblante preocupado. A ideia aqui é fazer uma piada entre o personagem fictício e o personagem histórico, que compartilha o nome com o primeiro, mas que foi responsável por elucidar a forma de espalhamento da cólera em Londres no século XIX.
Muitos de nós, que partilhamos da cultura pop dos anos 2000 e 2010, conhecemos o personagem Jon Snow da série de livros e de televisão Game of Thrones e a famosa frase “You know nothing, Jon Snow” (“Você não sabe de nada, Jon Snow”, em tradução livre). Entretanto um personagem histórico menos conhecido e com nome similar foi protagonista de uma revolução na forma de abordar e elucidar problemas, levando a melhorias importantes para a sociedade de sua época.
O médico inglês John Snow é considerado o fundador da epidemiologia, área das ciências da saúde que se preocupa com a compreensão do espalhamento e acometimento de doenças nas populações humanas e de outros seres vivos de nosso interesse. Ele foi um dos pioneiros no uso de dados para resolver problemas que assolavam a sociedade de sua época.
A cólera é uma doença muito bem conhecida atualmente. Ela é causada por uma bactéria chamada Vibrio cholerae, tem ciclo fecal-oral e causa graves diarreias e desidratação, podendo levar à óbito pacientes não tratados. No início dos anos 2000 a doença foi rigorosamente controlada com acentuada queda do número de casos no Brasil. Entretanto esta é uma doença que ainda aflige diversas regiões no globo, como países na África e na Ásia. Nos últimos anos temos presenciado um aumento das notificações de casos suspeitos da doença nestas regiões.
No séc XIX, entretanto, a cólera era uma doença de ciclo e agente patogênico desconhecidos. A hipótese mais aceita à época era a Teoria do Miasma, que alegava que uma forma da “mau ar” emanava de fontes como matéria orgânica em decomposição e se instalava no corpo de seres humanos causando diversas doenças potencialmente fatais, inclusive a própria cólera.
Neste contexto, a doença era realidade presente nas populações humanas e acabava sendo causa de óbito de milhares de pessoas, incluindo bebês e crianças em diversas regiões do globo e, em especial, em áreas mais densamente populadas. Na cidade de Londres, na Inglaterra, diversas regiões testemunhavam com frequência surtos de cólera, causando graves problemas sociais e econômicos.
A principal maneira de lidar com este tipo de ocorrência era afastar a população do local do surto, à medida do possível, e tratar os infectados, uma vez que eles teriam sido acometidos de “maus ares”, segundo a Teoria do Misma. Entretanto, para o médico John Snow esta explicação e forma de abordar o problema não eram satisfatórias à luz das evidências que ele observava.
O problema enfrentado por John Snow
Na Londres em pleno apogeu da Revolução Industrial, Snow observou inconsistências nos infectados dentro de uma mesma família. Segundo suas observações, em famílias pequenas raramente mais de um único membro era infectado ao mesmo tempo, mesmo compartilhando o mesmo ambiente doméstico, o que depunha contra a possibilidade de a doença ser causada por algo no ar, mas a favor de ser uma infecção adquirida em outra localidade.
Além do mais, Snow já havia trabalhado tratando os trabalhadores em minas de carvão na Inglaterra, onde observou um número enorme de infecções por cólera e atribuiu este fenômeno ao fato de que, invariavelmente, os trabalhadores destes locais não tinham acesso a banheiros e a higiene apropriada, e levando sua comida para as minas, onde comiam com as mãos sujas.
No bairro londrino de Soho, em 1854, houve um grande surto de cólera, o que forneceu os dados necessários para Snow testar sua hipótese de que a transmissão da doença ocorria por ingestão de água ou comida contamiadas, o que contrariava a visão vigente na época tanto por cientistas quando pelo próprio governo de Londres.

Sobre um pequeno mapa da região afetada, Snow anotou pontuações nos locais em que residiam pessoas que contraíram a doença, mapeando as ocorrências da doença. As anotações se distribuíam em torno de bomba de água que levava água de um poço até a surpefície para que as pessoas a usavam para eber e lavar seus pertences.
Ainda mais curioso foi o fato de que Snow descobriu que bem próximo a bomba funcionava uma cervejaria que utilizava sua água para produzir suas bebidas. Entretanto nenhum de seus 70 funcionários havia sido contaminado, uma vez que não consumiam a água da bomba diretamente, mas licor de malte, um produto gerado a partir da água fervida.
Desta maneira, Snow inferiu que não era a água suja que estava causando a doença, mas algo que era aniquilado quando a água era fervida, isto é, um contaminante.
A confirmação veio quando Snow teve acesso aos dados de uma região mais ao sul da Inglaterra em que uma população era abastecida por água de bombas de duas empresas concorrentes. Uma delas usava uma fonte de água a montante do Tâmisa, perto de sua nascente. As pessoas que utilizavam água exclusivamente desta fonte não eram acometidas pela cólera.
A outra empresa utilizava água do Tâmisa em uma localidade mais a jusante, tendo recebido eflúvios de esgoto em seu percurso. Os usuários abastecidos pela água desta companhia apresentavam uma taxa de contaminação e manifestação da cólera cerca de catorze vezes maior do que as abastecidas pela primeira companhia, ainda que morassem na mesma região da cidade.
Você sabe de algo, John Snow!
A partir de seu levantamento e análise de dados, John Snow propôs não apenas uma maneira de mitigar e reduzir os números de casos de cólera na Inglaterra, mas também uma hipótese alternativa à Teoria do Miasma como forma de explicar como ocorrem infecções de doenças. Sua hipótese foi testada e desenvolvida por outros cientistas e ficou conhecida, mais tarde, como Teoria Microbiana.
Após as conclusões de Snow, a prefeitura de Londres substituiu a bomba principal que abastecia Soho por outra em caráter de urgência, o que atenuou imensamente o surto. Entretanto a explicação de Snow para o motivo da contaminação da água (contaminação por fezes humanas) foi categoricamente repudiada pela prefeitura, dado seu alto grau de abjeção e escatologia, o que mostra que, muitas vezes, nos prendemos a crenças mesmo à luz de dados e evidências.
Com estes estudos, John Snow acabou se sagrando como o pai da epidemiologia e do uso de dados populacionais para elucidar padrões de distribuição e proliferação de doenças.
Este caso serve para que lembremos do fato de que, às vezes, com poquíssimas ferramentas tecnológicas (John Snow não tinha acesso a linguagens de programação como Python ou R, ao Excel e sequer a Power BI e Tableau) ou mesmo contas rebuscadas e testes estatísticos, conseguidos extrair informações valiosas dos dados que temos à disposição. Para isso basta um olhar curioso, um conhecimento do problema investigado e a capacidade de olhar crítica e analiticamente para o problema.


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