Estatística e representatividade em espaços públicos


“Sem termos estatística, como conheceremos o Brasil?”

Perguntou Francisco de Assis Mascarenhas em uma sessão do Senado acerca da importância de recensear a população brasileira. Poderia muito bem ter acontecido em 2020 ou 2021, época em que a execução do Censo de 2020 fora colocada em xeque pelo então governo ao reduzir a verba para execução do Censo em mais de 90%. Some-se a isso todas as dificuldades impostas pela pandemia, além questões político-ideológicas – que levou a presidente em exercício do IBGE a entregar o cargo no meio do mandato – e o Censo foi adiado por dois anos.

Na verdade, a fala de Mascarenhas data de 1826, apenas 4 anos depois de proclamada a independência, quando o país ainda não era uma república. Os atores políticos do recente Estado brasileiro à época se viram diante de um dilema: como governar um país de dimensões continentais sem ter informações sobre como se caracteriza e vive sua população? Qual a dimensão territorial? Quais as principais fontes de renda dos diferentes estados? Qual era a fração da população que era de pessoas livres em relação aos escravizados? Demoraria quase 50 anos para que o primeiro censo fosse realizado, em 1872, após inúmeras “tentativas frustradas”, conforme caracterizou Nelson Senra em seu livro “História das Estatísticas Brasileiras”. Estas envolveram problemas característicos ao momento histórico do período como falta de conhecimento (a própria estatística como área do conhecimento estava em desenvolvimento), de logística, de comunicação do governo com a população, bem como de fatores internos, como as inúmeras guerras internas civis que reivindicavam um governo republicano, bem como externas como a Guerra do Paraguai.

Foi esta última, aliás, que motivou o governo a renovar seus esforços na realização de um censo abrangente a nível nacional. Sem ter informações precisas sobre a população, o governo de D. Pedro II não sabia o contingente de homens que haviam sido recrutados em cada província, por exemplo. Outra motivação para recensear a população era para cálculo da composição da Câmara de Deputados, em que intencionava-se que o número de cadeiras reservadas para cada estado deveria refletir a proporção de habitantes frente ao total do país, sendo oficializada na Constituição de 1989. Porém o cálculo proporcional foi feito no Brasil pela última vez apenas em 1993.

“Se perguntar demais, você vai descobrir coisas que nem queria saber”

Essa frase, em contraste, poderia muito bem ter sido proferida por algum outro político português colega de Mascarenhas na época do Brasil imperial, interessado em manter privilégios, mas foi dita pelo ex-ministro Paulo Guedes na cerimônia de posse de Susana Guerra como presidente do IBGE. A mesma que acabaria por entregar o cargo ao se ver incapaz de realizar o Censo de 2020.

A fala, junto com o corte de verbas, ilustra bem o tipo de situação que, ao longo de anos, levou a uma sensação de descrença e distanciamento entre população, carente de transformações sociais profundas e classe política, grande parte interessada em manter privilégios. Uma consequência disso é que não se enxerga mais a política como força transformadora e sim como algo distante, ineficaz, quando não repulsiva, capaz de nos chocar e horrorizar de maneiras diferentes. O último exemplo é o do PL-1904/24 que prevê criminalizar mulheres que abortarem após 22a semana de gravidez, equiparando a pena à do homicídio simples, podendo chegar a 20 anos de reclusão. O grotesco se torna ainda mais absurdo quando descobre-se que a pena máxima para um estuprador é de 10 anos.

Uma pesquisa de opinião que mostrou que 71% da população discorda da equiparação do aborto com homicídio, o que ajuda a trazer mais luz para o abismo que existe entre cidadãos e classe política. Some-se a isso a ampla manifestação contra o PL em redes sociais. Mas o que de fato garante que situações políticas não continuarão acontecendo? As manifestações são importantes para dar atenção tema e mobilizar a opinião pública. Mas é preciso mais. E, hoje o instrumento mais efetivo que os cidadãos têm para se fazerem ouvidos é o voto. Idealmente combinado com a estatística, a mesma que Mascarenhas anteviu que nos permitiria conhecer melhor o Brasil.

O meme abaixo foi bastante compartilhado à época do PL-1904 retrata com precisão e ironia fina o sistema político brasileiro:

De acordo com os dados abertos da Câmara dos Deputados, atualmente apenas 17% dos deputados são mulheres. Em contraste, as mulheres são a maioria no Brasil (51,5% contra 48,5% de homens) de acordo com o Censo de 2022 – note-se que a população feminina é maior do que a masculina desde 1980, pelo menos. A obrigatoriedade de diversidade na Câmara dos Deputados é prevista em lei apenas levando-se em conta a aspecto regional, mas o país certamente se beneficiaria muito com menores desigualdades de gênero e raça tanto na Câmara, como no Senado e outras instâncias políticas importantes. No livro “Mulheres Invisíveis” a autora Caroline Criado Perez ilustra o porquê:

“No Reino Unido, uma análise recente do impacto que as deputadas femininas tiveram em Westminster desde 1945 concluiu que as mulheres são mais propensas a falar sobre questões femininas, bem como sobre política familiar, educação e cuidados.”

“Uma análise do impacto da representação feminina em dezenove países da OCDE entre 1960 e 2005 também concluiu que as mulheres são mais propensas a abordar questões que afetam as próprias mulheres.”

Para ilustrar melhor a situação da Câmara dos Deputados brasileira, analisemos os gráficos abaixo que mostram, para raça e sexo, a diferença em proporção da população da câmara em comparação com os dados do censo de 2022.

Apesar de pretos e pardos representarem mais de 50% da população brasileira em 2022, apenas 26.6% dos deputados são destas raças. Em contraste, a proporção de deputados brancos é super-representada na Câmara em comparação com a população: 72.1% contra 43.5%.

Quando olha-se para a distribuição por sexo, a discrepância torna-se ainda mais clara: em um país de maioria feminina na população geral, na Câmara mais de 80% dos deputados são homens.

Combinando as duas análises é possível verificar que 311 dos 512 deputados são homens brancos, o que representa mais de 60% das cadeiras da Câmara.

A análise dos dados e a realidade da Câmara dos Deputados revelam uma desconexão significativa entre a composição da população brasileira e seus representantes políticos. Esta discrepância não apenas distorce a democracia representativa, mas também perpetua desigualdades sociais e políticas.

Para que o Brasil possa avançar em direção a uma sociedade mais justa e equitativa, é essencial que nossas instâncias políticas reflitam a diversidade de nossa população. A sub-representação de mulheres, pretos e pardos (além de outros grupos minoritários que não foram contemplados nesta análise) impede que questões fundamentais para essas parcelas da população sejam adequadamente abordadas. Como demonstrado por estudos, a presença de grupos sub-representados em posições de poder leva a uma maior atenção a temas que lhes são pertinentes, como políticas familiares, educação, cuidados e questões de equidade racial.

A representatividade política é mais do que uma questão de justiça social; é uma ferramenta crucial para garantir que todas as vozes sejam ouvidas e consideradas na formulação de políticas públicas. A diversidade nos espaços de poder contribui para uma governança mais inclusiva e eficaz, capaz de responder de maneira mais adequada às necessidades e demandas de toda a população. E o voto é o instrumento mais poderoso que a população possui para contribuir diretamente para o aumento da representatividade nas instâncias políticas.

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