Por que você quase sempre vai perder dinheiro com bets

Como matemática, psicologia e as redes sociais ajudam a mostrar que é uma má ideia gastar dinheiro com jogos de azar e apostas esportivas

Introdução

Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta, tenho a impressão de ser ainda mais ridícula a opinião rotineira, por todos aceita, de que é estúpido e absurdo esperar algo do jogo. E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro meio de adquirir dinheiro, como, por exemplo, o comércio? É verdade que, em cem jogadores, ganha apenas um. Mas que tenho eu com isso?*

* Todas as citações deste texto são retiradas do livro “Um jogador” de Fiódor Dostoiévski, de tradução de Boris Schnaiderman e de publicação da editora 34.

Em setembro de 2024 uma notícia preocupante saiu nos jornais: estimava-se que milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram o dinheiro do programa social em sites de aposta (ou “bets”) – o cálculo inicial era de R$ 3 bilhões. Além do impacto econômico nos cofres públicos, há riscos sociais associados à aposta, como o aumento da dependência ao jogo e o comprometimento da renda da família de quem aposta. Em resposta a essa situação, o governo federal anunciou, semanas depois, medidas como restringir o uso do cartão do Bolsa Família em sites de apostas, monitorar CPFs e implementar ações para lidar com a dependência dos jogos.

Pessoas gastarem suas economias com apostas e jogos de azar não é uma novidade da época em que vivemos, nem algo que aflige apenas pessoas de uma classe social específica. Em 1867, Dostoiévski, tido como um dos maiores escritores da história, lançou o livro “Um Jogador”, que mostra a jornada de degradação do personagem principal, Aleksiéi (da citação acima), frente ao jogo. O próprio Dostoievski era viciado em roleta e, em determinado momento, estava assolado em dívidas após a morte do irmão e sua primeira esposa, o que o levou a se afundar ainda mais no vício como forma de tentar resolver sua situação financeira. Tal desespero o levou a um acordo extremo com editores: venderia antecipadamente os direitos autorais de suas obras futuras – incluindo clássicos como “Crime e Castigo” – em troca de adiantamentos para pagar suas dívidas de jogo.

Seja você um grande escritor, um engenheiro ou advogado de sucesso, no longo prazo, inevitavelmente vai perder dinheiro se continuar apostando, a despeito do que as inúmeras propagandas televisão e nas redes sociais tentem mostrar do contrário. E para entender o porquê precisamos nos valer de conceitos de matemática, psicologia e como algoritmos, redes sociais e mecanismos de recompensa nos levam a tomar decisões cada vez mais irracionais.

Contexto histórico

O próprio desenvolvimento da teoria da probabilidade surgiu a partir de estudos de jogos de azar, em uma relação que já dura centenas de anos. No século XVI, Gerolamo Cardano, um matemático italiano e jogador compulsivo, escreveu o “Liber de Ludo Aleae” (Livro dos Jogos de Azar), um dos primeiros tratados sistemáticos sobre probabilidade. Motivado por suas próprias experiências nos jogos de dados, Cardano foi pioneiro ao introduzir o conceito de espaço amostral, lançando as bases para uma compreensão matemática do acaso. Meio século depois, a correspondência entre Blaise Pascal e Pierre de Fermat em 1654 marcaria o nascimento formal da teoria das probabilidades, sendo logo seguida pela publicação do primeiro livro dedicado ao tema por Christian Huygens em 1657, intitulado “De Raciociniis in Ludo Aleae” (Sobre Raciocínios em Jogos de Azar). No início do século XVIII, Jacob Bernoulli consolidaria esse campo de estudos com sua obra fundamental “Ars Conjectandi”, desenvolvendo a Lei dos Grandes Números (que veremos em mais detalhes ao longo deste texto) e estabelecendo definitivamente a probabilidade como uma disciplina matemática, e mostrando como suas raízes permaneciam profundamente entrelaçadas com o universo dos jogos de azar.

A relação entre teoria de probabilidade e jogos de azar

Expliquei à avó o que significavam aquelas numerosas combinações de lances e, finalmente, as diversas sutilezas do sistema de números. A avó escutava com atenção, guardava de memória, fazia perguntas e decorava.

– E o que significa zero? O crupiê gritou agora “zéro”. E por que ele arrebanhou tudo o que estava na mesa? Tomou para si todo aquele montão? O que quer dizer isso?

– Pois bem, vovó, quando sai zero, quem ganha é a banca. Se a bolinha acerta no zero, tudo o que está na mesa passa a pertencer à banca. É verdade que se dá mais um lance, para desempate, mas a banca não paga nada

– Que coisa! E eu não recebo nada?

– Não, vovó, se a senhora, antes disso, apostou no zero, então, quando ele sair, vão pagar-lhe trinta e cinco vezes mais.

– Como trinta e cinco vezes? E sai com muita frequência? Nesse caso, por que eles, imbecis, não fazem essa aposta?

– São trinta e seis probabilidades contra, vovó.

– Que absurdo! Potápitch! Potápitch! Espera, eu também trouxe dinheiro, está aqui! Apanhou do bolso um porta níqueis repleto e tirou dele um friedrischsdor. Toma, coloca já no zero.

Na passagem acima, Aleksiéi acompanha Antonida, tia do general para quem trabalha em sua primeira ida ao cassino. A descrição da cena captura perfeitamente o surgimento do fascínio pelos jogos de azar ao primeiro contato: após receber explicação sobre o funcionamento do jogo, nota-se que a “vovó” já desenvolveu a ilusão de que, apesar das probabilidades contrárias, pode ter sucesso no jogo.

Da perspectiva do cassino, a roleta europeia não é apenas um jogo de sorte, e sim uma máquina matemática engenhosamente projetada para garantir lucro. Sua estrutura é simples: 37 números, indo de 0 a 36, onde cada número tem atrelado a si uma probabilidade de sair quando acionada.

Quando um jogador aposta no zero, por exemplo, há um cenário que parece atraente ao jogador, como na cena descrita no livro: “Se eu acertar, ganharei 35 vezes minha aposta original”. Mas a matemática revela que a probabilidade de acertar é de apenas 1 em 37 (aproximadamente 2,7%), enquanto a chance de perder é de 36 em 37 (cerca de 97,3%).

Valor Esperado: como quantificar nossa incerteza

O conceito de valor esperado em estatística pode ser comparado a uma previsão do que você espera ganhar ou perder, em média, ao realizar uma ação muitas vezes. Imagine, por exemplo, que você tem um dado justo de seis lados, e você ganha o número de reais correspondente ao número que sai no dado cada vez que você joga. O valor esperado nos diz quanto de dinheiro, em média, você pode esperar ganhar.

Elaborando o exemplo: sabemos que cada face do dado tem a mesma chance de sair, ou seja, 1 em 6. Se você multiplicar cada possível resultado (1, 2, 3, 4, 5, 6) pela sua probabilidade de acontecer (1/6), e somar todos esses valores, você terá o valor esperado.

O cálculo seria: (1/6) * R$ 1,0 + (1/6) * R$ 2,0 + (1/6) * R$ 3,0 + (1/6) * R$ 4,0 + (1/6) * R$ 5,0 + (1/6) * R$ 6,0. Que nos fornece a média de dinheiro que você pode esperar ganhar por jogada ao longo do tempo, que é igual a R$3,50.

A definição genérica e mais rigorosa de valor esperado é: medida estatística que mostra o resultado médio de uma série de eventos, ponderados por suas probabilidades de ocorrência.

Nos parágrafos acima a frase “em média, ao realizar uma ação muitas vezes” foi colocada em negrito por que essa ideia é chave para o entendimento. Frente a situações que são sujeitas a aleatoriedade (também conhecido como processo estocástico) e incerteza, o valor esperado nos dá uma métrica para uma tomada de decisão mais informada.

Para o exemplo do dado, sabendo-se que o valor esperado de apostar no número da face do dado é de R$3,5, essa informação agora pode embasar a decisão de apostar ou não caso alguém te informe o custo deste jogo. Se o custo de jogar for de R$ 3,0, vale a pena arriscar. Se o custo for de qualquer valor acima de R$ 3,5, não.

Mas lembre-se: isso é o valor médio se o dado for jogado várias vezes. Se você jogar o dado apenas 1 vez, é muito pouco. E é neste aspecto que a lei dos grandes números entra em cena.

Lei dos grandes números

A Lei dos Grandes Números é um princípio fundamental em probabilidade e estatística que descreve o resultado de realizar o mesmo experimento muitas vezes. Segundo essa lei, quanto mais vezes o experimento é realizado, mais a média dos resultados obtidos se aproximará do valor esperado teórico.

Por exemplo, se você jogar uma moeda justa (50% de chance de cara, 50% de chance de coroa) algumas vezes, é possível obter uma sequência como cara, cara, coroa, cara, o que não reflete exatamente a probabilidade de 50/50. No entanto, se você continuar jogando essa moeda, digamos, milhares ou milhões de vezes, verá que o número de caras e coroas se aproxima cada vez mais de uma divisão 50/50.

Vejamos isto na prática. Simulando 50 lançamentos de moeda temos o gráfico a seguir: nele podemos ver a elevada variabilidade inerente a uma amostra pequena. O valor esperado teórico é termos 50% (0.5 no eixo y do gráfico) de resultados de cara. Mas nota-se que com um baixo número de jogos esse valor é atingido poucas vezes, alem de termos elevada variabilidade.

Vejamos agora a simulação com 10.000 jogos da moeda:

O ponto crucial a entender é que a Lei dos Grandes Números nos explica que, a longo prazo, as médias tendem a se tornar previsíveis e estáveis. A curto prazo, porém, estão sujeitas a aleatoriedade e variação. E este é um dos principais conceitos que cassinos e, atualmente, as casas de apostas online baseiam-se para tornarem-se lucrativos. Do ponto de vista da casa de apostas, cada usuário do site (ou do cassino, você já pegou a ideia) é equivalente a um ou poucos lançamentos de moeda nos gráficos anteriores. Ou seja, para a casa de apostas, vale o segundo gráfico que traz estabilidade, pois ao levar-se em conta toda a quantidade de jogadores que conseguem atrair a situação ficará análoga ao do lançamento de milhares de moedas, trazendo estabilidade. Para os jogadores, individualmente, vale o primeiro gráfico, pois ali está retratado apenas os (poucos) jogos que fazem, repleto de variabilidade e incerteza. O que nos leva à segunda estratégia que as casas de apostas usam para garantir que sempre sairão no lucro: manipulação de odds.

Manipulação das odds. Ou por que a casa sempre vai ter vantagem

Voltando ao exemplo do jogo da roleta do livro:

Para uma aposta única de 1 unidade no zero, temos:

  • Se acertar (probabilidade de 1/37): ganho de 35 unidades
  • Se errar (probabilidade de 36/37): perda de 1 unidade

Calculando o valor esperado dessa aposta: Valor Esperado = (35 × 1/37) + (-1 × 36/37) = 35/37 – 36/37 = -1/37 ≈ -0,027 (ou -2,7%)

Em outras palavras, para cada unidade apostada, o jogador pode esperar perder aproximadamente 0,027 unidades no longo prazo. Parece pouco? É exatamente essa margem pequena que garante o lucro consistente do cassino, embasado pela Lei dos Grandes Números.

Entenda, quem faz as regras é o cassino. E o cassino escolher pagar 35 unidades para o zero não é por acaso. Caso pagasse 36 unidades, o jogo seria matematicamente “justo” (a conta que fizemos anteriormente daria zero) e tanto jogador quanto a casa não sairiam no lucro pelo cálculo do valor esperado. Mas essa diferença sutil é o que transforma a roleta em um jogo extremamente lucrativo para o cassino.

Um exemplo mais atual – casas esportivas online (bets)

Trazendo para os tempos atuais, vejamos como as casas de apostas esportivas online se valem de ideias muito similares para garantirem seus lucros:
Em um jogo hipotético entre Palmeiras x Corinthians, a casa de apostas usa seus modelos matemáticos (que para o futebol leva em conta aspectos como histórico de confrontos diretos, forma atual, lesões, quem joga fora ou em casa, entre outros) para determinar que:

  • Palmeiras tem 45% de chance de vitória
  • Corinthians tem 30% de chance de vitória
  • Empate tem 25% de chance

As odds são calculadas fazendo-se o inverso dessas probabilidades. Em um mercado ‘justo’, portanto, as odds seriam:

  • Palmeiras: 2.22 (1/0.45)
  • Corinthians: 3.33 (1/0.30)
  • Empate: 4.00 (1/0.25)

Porém, a casa aplica uma margem (geralmente de 5%), aumentando artificialmente as probabilidades. As odds reais oferecidas seriam:

  • Palmeiras: 2.10
  • Corinthians: 3.15
  • Empate: 3.80

A soma das probabilidades implícitas agora é de 105% (1/2.10 + 1/3.15 + 1/3.80), dando lucro para a casa independentemente do resultado. Com milhares de apostas, a Lei dos Grandes Números garante que essa margem se concretize em lucro.

Para garantir a proteção de seus ganhos ainda mais, as casas de apostas continuamente ajustam as odds com base em volume de apostas em cada resultado, escalações dos times que eventualmente sofreram alterações de última hora, comportamento de apostadores profissionais, entre outros.

Mas se as odds são tão claramente desfavoráveis, por que continuamos jogando? Ao final da cena no cassino a personagem da vovó pergunta: “Por que eles, imbecis, não fazem essa aposta?”. Neste momento, ela demonstra que caiu na chamada “falácia do jogador”: focando apenas no potencial pagamento alto, ignora completamente a probabilidade baixa de sucesso. A falácia do jogador é um dos vários exemplos de vieses cognitivos que afetam apostadores.

Vieses cognitivos

Será verdade que não possamos aproximar-nos da mesa de jogo sem que a superstição imediatamente nos domine?

(…) cheguei ao centro e fiquei bem ao lado do crupiê; em seguida, comecei a experimentar timidamente o jogo, apostando duas ou três moedas de cada vez. Nesse ínterim, fiquei observando e fazendo descobertas; tive a impressão de que, propriamente, o cálculo tem muito pouca importância, e de modo nenhum aquela que lhe atribuem inúmeros jogadores.

Na passagem acima, Aleksiéi mostra em um dos aspectos mais intrigantes da psicologia humana: nossa tendência a buscar padrões onde só existe aleatoriedade, e nossa capacidade de ignorar evidências matemáticas em favor de intuições e superstições.

Nos anos 1970, os psicólogos Daniel Kahneman e Amos Tversky revolucionaram nossa compreensão sobre como tomamos decisões ao identificar uma série de “atalhos mentais” que nosso cérebro usa para processar informações rapidamente. Estes atalhos, chamados de vieses cognitivos, embora úteis em muitas situações do dia a dia, podem nos levar a erros sistemáticos de julgamento – especialmente em situações que envolvem probabilidade e incerteza.

Os jogos de azar e apostas são um terreno particularmente fértil para estes vieses. Vale explorar alguns dos principais:

Falácia do jogador e ilusão de controle

Em compensação, cheguei a uma conclusão que parece exata: com efeito, na sucessão dos resultados casuais, existe não um sistema, mas uma espécie de ordem, o que, naturalmente, é muito estranho. Por exemplo, acontece saírem, depois dos doze números centrais, os doze últimos e, depois, passa para os doze primeiros.

Como vimos no comportamento da “vovó”, existe uma tendência natural de acreditar que podemos ser a exceção à regra estatística. Entre outras palavras, a crença equivocada de que eventos aleatórios são influenciados por eventos passados. Se uma roleta deu vermelho cinco vezes seguidas, muitos apostadores acreditarão que preto é “devido” – quando na verdade cada giro da roleta é completamente independente dos anteriores. Mesmo em jogos puramente aleatórios, desenvolvemos a crença de que podemos influenciar o resultado. Seja através de “sistemas” elaborados de apostas, rituais supersticiosos, ou a sensação de que estamos “quentes”, esta ilusão nos faz subestimar o papel do acaso e superestimar nossa capacidade de previsão.

Viés de Confirmação

– Aposta, aposta!

Apostei dois friedrichsdors. A bolinha voou por muito tempo sobre a roda, por fim começou a pular sobre as chanfraduras. A avó ficou petrificada, comprimiu-me a mão e, de repente, bumba!

– Zéro, anunciou o crupiê.

– Estás vendo, estás vendo! Bem que eu te disse, bem que eu te disse! E foi o Senhor, ele mesmo, que levou a apostar duas moedas de ouro.

Outro viés poderoso é nossa tendência a notar e valorizar informações que confirmam nossas crenças, ignorando evidências contrárias. Um apostador pode lembrar vividamente de suas vitórias, mas “esquecer” convenientemente das perdas muito mais frequentes. Nas apostas esportivas modernas, este viés é ainda mais perigoso: apostadores tendem a sobrevalorizar suas análises do esporte que conhecem bem, ignorando as odds desfavoráveis.

Perseguindo perdas (“Chasing Losses”)

– Vovó, lá se foram todos os doze mil – comuniquei-lhe.

– Estou vendo que se foi tudo – disse ela, numa espécie de fúria tranquila, se é possível expressar-se assim. – Estou vendo, paizinho, estou vendo – murmurava, olhando diante de si, imóvel e como que pensativa – Eh! não quero mais viver… aposta mais quatro mil florins!

– Mas não há mais dinheiro, vovó

– Não existem por aqui casas de câmbio? – perguntou-me a avó com ar decidido. – Disseram-me que poderíamos trocar todos os nossos títulos.

– Oh, quanto queira! Mas a senhora vai perder tanto na troca que…

– Bobagem! Vou ganhar tudo de volta! Leva-me para lá.

Talvez o mais destrutivo dos vieses seja o que os psicólogos chamam de “escalada do comprometimento”. Após uma perda, existe uma tendência quase irresistível de aumentar as apostas para “recuperar” o dinheiro perdido. Esta espiral pode ser devastadora: quanto mais se perde, mais se aposta, levando a perdas ainda maiores.

O que torna estes vieses particularmente perigosos é que conhecê-los não nos torna imunes a eles. Como Kahneman demonstrou em seus estudos, mesmo especialistas em estatística e probabilidade podem cair nestas armadilhas cognitivas quando não estão vigilantes. É por isso que as casas de apostas modernas são tão eficientes: elas não apenas manipulam as odds matemáticas a seu favor, como também exploram ativamente nossas vulnerabilidades psicológicas.

No cassino do século XIX retratado por Dostoievski, estas vulnerabilidades eram exploradas através da atmosfera luxuosa, das mesas verdes e do tilintar das moedas. Hoje, as casas de apostas online levaram esta exploração a um novo patamar através da tecnologia:

  • Notificações push destacam seletivamente vitórias de outros apostadores (‘Fulano acabou de ganhar R$50.000!’), alimentando o viés de confirmação
  • Interfaces cuidadosamente projetadas destacam “sequências quentes” e “padrões” em resultados passados, explorando a falácia do jogador
  • Após perdas significativas, o apostador é bombardeado com ofertas de bônus e “apostas grátis”, aproveitando-se da tendência de perseguir perdas
  • Gráficos e estatísticas complexas criam uma falsa sensação de controle e previsibilidade

Se no tempo de Dostoievski a ‘vovó’ precisava fisicamente ir até a roleta para apostar mais, hoje basta um clique no celular para transformar a busca pela recuperação das perdas em um ciclo vicioso instantâneo.

E se estes vieses cognitivos já são perigosos por si só, eles se tornam ainda mais problemáticos quando combinados com os mecanismos de recompensa do nosso cérebro – um sistema que as casas de apostas modernas aprenderam a hackear, como veremos a seguir.

Dopamina e Recompensa: por que é tão difícil parar?

De súbito, comecei a tremer: senti um calafrio percorrer-me o corpo todo. Contive a respiração e o coração parou de bater… Ganhara!

A descrição de Aleksiéi sobre o momento da vitória revela muito sobre o funcionamento do sistema de recompensa do nosso cérebro. O que ele experimenta é uma descarga de dopamina, o mesmo neurotransmissor responsável por nos fazer sentir prazer em atividades essenciais para sobrevivência, como comer ou fazer sexo.

Mas há algo peculiar no sistema de recompensa quando falamos de apostas: a dopamina é liberada não apenas no momento do ganho, mas também na antecipação dele. É por isso que o ato de apostar pode ser tão viciante quanto ganhar. As casas de apostas modernas entendem profundamente esta mecânica cerebral, criando interfaces que maximizam tanto a antecipação quanto a recompensa.

Aversão à Perda: quando perder dói mais que ganhar

Senti um aperto no coração; fiquei simplesmente estupefato; meus joelhos tremiam, minhas mãos estavam trêmulas (…) A perda era terrível, e ainda por cima indecente.

Kahneman e Tversky descobriram que, psicologicamente, uma perda tem impacto aproximadamente duas vezes maior que um ganho de mesmo valor. Esta ‘aversão à perda’ explica por que apostadores frequentemente continuam jogando após grandes perdas – o desconforto psicológico é tão intenso que a única saída parece ser tentar recuperar o dinheiro perdido.

Gamificação: quando o jogo vira vício

Comecei a observar o jogo unicamente por curiosidade, sem nenhuma intenção de jogar (…) mas logo senti aquela inquietação febril que sempre me domina à mesa de jogo.

Se no século XIX a ‘inquietação febril’ era provocada pelo ambiente do cassino, hoje os aplicativos de apostas são cientificamente projetados para maximizar o engajamento. Notificações push, sons, animações e recompensas são cuidadosamente calibrados para manter o apostador conectado. O que parece um simples design de interface esconde anos de pesquisa em psicologia comportamental.

Algoritmos e Engajamento

À noite, não pude deixar de ir ao cassino. Que paixão vergonhosa! Não, não é o dinheiro que mais me seduz. Apenas quero entrar amanhã naquela sala, ficar ao lado daquelas pessoas, ouvir seus comentários, observar…

Os cassinos modernos são digitais, e seus algoritmos aprendem continuamente o comportamento de cada usuário. Através de machine learning, identificam padrões de apostas, horários preferidos e até sinais de que um apostador pode estar prestes a desistir – momento em que ofertas personalizadas são disparadas automaticamente.

Além disso, o aspecto social que Aleksiéi descreve foi potencializado: chats ao vivo, compartilhamento de apostas em redes sociais e rankings criam uma comunidade virtual que normaliza o comportamento de risco.

O resultado é um ciclo perfeito de dependência comportamental:

  1. A antecipação libera dopamina
  2. Vitórias ocasionais reforçam o comportamento
  3. Perdas provocam desconforto psicológico intenso
  4. A tentativa de recuperar perdas leva a mais apostas
  5. Algoritmos identificam e exploram padrões individuais
  6. A gamificação mantém o engajamento mesmo sem apostas
  7. O ciclo se repete, cada vez mais profundo

Em essência, o que as casas de apostas modernas conseguiram foi transformar os mecanismos psicológicos descritos por Dostoievski em um sistema científico de exploração do comportamento humano.

Conclusão

Agora, resta-me perguntar: que sou eu? Um homem acabado, embora ainda viva. (…) Amanhã, amanhã tudo estará terminado!

O trecho final de ‘Um Jogador’ ecoa com uma triste ironia. Para Aleksiéi, assim como para milhões de apostadores hoje, esse ‘amanhã’ onde tudo terminará nunca chega. A combinação entre matemática precisa, exploração de vieses cognitivos e manipulação comportamental criou uma indústria bilionária que se alimenta de nossa própria irracionalidade.

Se no século XIX Dostoievski precisou viajar da Rússia até Baden-Baden para perder suas economias na roleta, hoje basta um smartphone para transformar qualquer lugar em um cassino. A tecnologia não apenas facilitou o acesso às apostas, mas também aperfeiçoou sua capacidade de exploração das vulnerabilidades humanas: algoritmos aprendem nossos padrões, interfaces maximizam dopamina, e notificações push nos perseguem 24 horas por dia.

A notícia sobre beneficiários do Bolsa Família gastando R$ 3 bilhões em apostas com que abrimos este texto não é, portanto, apenas uma tragédia social – é o resultado previsível de um sistema projetado para ser viciante. Quando combinamos odds matemáticas desfavoráveis, vieses cognitivos profundamente arraigados e mecanismos psicológicos de dependência, o resultado é uma tempestade perfeita de perdas financeiras e sofrimento humano.

Entender estes mecanismos talvez seja o primeiro passo para nos proteger deles. Como Dostoievski nos mostrou há mais de 150 anos, a natureza humana não mudou – mas a capacidade da indústria de apostas de explorá-la evoluiu exponencialmente.

Por mais ridículo que fosse o fato de eu esperar tanto da roleta (…) E por que há de o jogo ser pior do que qualquer outro meio de adquirir dinheiro?

A resposta para a pergunta do protagonista, agora sabemos, está na matemática, na psicologia e na tecnologia: porque o jogo foi cientificamente projetado para você perder, acreditar que pode ganhar, e continuar jogando mesmo assim.

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